trivialidades.net https://trivialidades.net/ A vida e o cotidiano através do olhar de um psicólogo humanista Mon, 19 May 2025 13:01:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://trivialidades.net/wp-content/uploads/2025/05/cropped-AE308E95-E99F-4D9A-961B-6A22CCF20D50.png trivialidades.net https://trivialidades.net/ 32 32 O jantar desconfortável de Thereza https://trivialidades.net/o-jantar-desconfortavel-de-thereza/ https://trivialidades.net/o-jantar-desconfortavel-de-thereza/#respond Mon, 19 May 2025 12:57:53 +0000 https://trivialidades.net/?p=94 Thereza olhava para o cardápio como se estivesse decifrando um código secreto. Os nomes sofisticados dos pratos, envoltos em descrições poéticas, quase faziam com que ela se esquecesse de que, no fim das contas, era só comida. Mas ali, naquele restaurante caro, tudo tinha um brilho diferente. Até o ar parecia mais denso, mais importante. […]

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Thereza olhava para o cardápio como se estivesse decifrando um código secreto. Os nomes sofisticados dos pratos, envoltos em descrições poéticas, quase faziam com que ela se esquecesse de que, no fim das contas, era só comida. Mas ali, naquele restaurante caro, tudo tinha um brilho diferente. Até o ar parecia mais denso, mais importante. O vinho já lhe aquecia o peito, trazendo uma leveza temporária, e a conversa das amigas ecoava como um pano de fundo confortável, mas distante.

Era engraçado como, mesmo cercada de pessoas, Thereza se sentia um tanto deslocada. As risadas à mesa, as taças tilintando, o garçom que passava com gestos medidos – tudo parecia orquestrado, uma dança silenciosa em que ela participava, mas com um pé fora do ritmo. Ela fingia estar ali por completo, mas uma parte dela estava distraída, perdida entre o sabor do vinho e o brilho suave das luzes refletido nas taças.

As amigas falavam sobre suas vidas – maridos, empregos, planos para o futuro. Havia uma segurança nas palavras delas, uma certeza que lhe escapava. Thereza sorria, concordava, mas, lá no fundo, uma pergunta a cutucava: “É só isso?” Olhou ao redor, buscando algo que não sabia bem o que era. Talvez uma confirmação, uma resposta silenciosa. E foi então que notou os casais nas outras mesas.

Cada casal parecia uma ilha, isolado em seu próprio mundo. Havia os que conversavam animados, gesticulando com intimidade, como se o resto do restaurante fosse uma paisagem desfocada. Havia também os que mal trocavam palavras, mas seus silêncios eram pesados de convivência, como se estivessem juntos há tanto tempo que não precisassem mais se traduzir em palavras. E Thereza se perguntou se aquilo era o que a esperava: uma ilha particular com alguém, ou o vazio de uma mesa silenciosa?

Enquanto a conversa das amigas continuava, ela provava a comida com um certo desinteresse. A combinação perfeita de sabores parecia um espetáculo para os sentidos, mas não conseguia tocá-la de verdade. Sentiu-se estranha, como se houvesse uma distância entre ela e o momento presente, como se estivesse observando a própria vida de fora. O que a incomodava não era o jantar em si, mas a consciência de que, no fundo, tudo era efêmero. As amigas, tão envolvidas na conversa, pareciam seguras em seus caminhos. Mas Thereza, bem ali ao lado delas, sentia que algo lhe escapava.

“E se a vida for isso mesmo?”, pensou, enquanto mexia distraída no talher, “Um desfile de pratos requintados e taças de vinho, enquanto por dentro a gente questiona o sentido de tudo?” Um suspiro quase escapou, mas ela o conteve. Não queria quebrar o encanto do momento, não queria manchar a perfeição aparente daquela noite. Mas o vinho, que antes a fazia flutuar, agora trazia um peso, como se cada gole afundasse um pouco mais suas reflexões.

Thereza riu de algo que uma das amigas disse, embora mal tivesse prestado atenção. Ria por reflexo, como se fosse uma personagem numa peça, desempenhando o papel esperado. A risada se dissipou rápido, dando lugar ao silêncio interno que ecoava mais alto que qualquer conversa ao redor. O que, afinal, ela esperava encontrar? Estava no restaurante caro, comendo o prato perfeito, cercada por pessoas que amava, e mesmo assim algo dentro dela clamava por mais. Mas mais o quê?

Ela olhou novamente para os casais. Os gestos sutis, os olhares trocados, o tédio disfarçado. Tudo parecia tão cheio de significados e, ao mesmo tempo, tão vazio. “Será que também vou acabar assim?” A pergunta ficou no ar, pairando entre uma garfada e outra. A vida parecia um prato caro, bonito de ver, bem apresentado, mas que, no fundo, talvez não saciasse a fome mais profunda.

Quando a noite terminou, Thereza saiu com um sorriso educado, seus pensamentos embaralhados entre a satisfação e o desconforto. Do lado de fora, o ar frio trouxe uma clareza que o calor do restaurante havia escondido. Não era uma insatisfação com a vida – era a consciência de como tudo é passageiro. Até essa crise que ela sentia, sabia que com o tempo iria embora. Mas, naquele momento, entre as risadas das amigas, o vinho e a comida finamente preparada, as profundezas de suas perguntas emergiram, trazendo um sabor amargo no final.

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Recortes da terapia: o vazio https://trivialidades.net/sessao-de-terapia-o-vazio/ https://trivialidades.net/sessao-de-terapia-o-vazio/#respond Mon, 19 May 2025 12:38:48 +0000 https://trivialidades.net/?p=91 A sala estava imersa em uma penumbra que parecia respirar junto conosco, como se o espaço entre as coisas carregasse um significado que ainda não se revelara. O relógio na parede marcava o tempo com uma precisão fria, enquanto ela, sentada à minha frente, deixava o silêncio falar. Seus olhos, tão cheios de nada, pareciam […]

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A sala estava imersa em uma penumbra que parecia respirar junto conosco, como se o espaço entre as coisas carregasse um significado que ainda não se revelara. O relógio na parede marcava o tempo com uma precisão fria, enquanto ela, sentada à minha frente, deixava o silêncio falar. Seus olhos, tão cheios de nada, pareciam perder-se em um vazio que não tinha fundo. Não havia lágrimas, nem dor manifesta, apenas a presença inquietante de uma ausência que quase podia ser tocada.

“É um vazio… algo que não consigo nomear,” ela disse, as palavras escapando de sua boca como se fossem um segredo indesejado.

O silêncio que se seguiu foi pesado, mas também era uma espécie de linguagem. Na Gestalterapia, entendemos que o vazio não é simplesmente a falta de algo, mas um espaço onde tudo é possível. É o intervalo entre o que se é e o que se poderia ser, uma brecha na consciência onde a existência se esconde, temerosa. Ali, naquele momento suspenso, percebi que o vazio que ela trazia não era uma ausência simples, mas uma desconexão profunda, uma ruptura que a afastava do que ela poderia ser.

“O que você sente quando encara esse vazio?” perguntei, sabendo que a resposta não viria de imediato, talvez nem viesse em palavras. Porque o vazio, esse lugar onde a alma se perde, se expressa de formas que escapam à linguagem comum.

Ela desviou o olhar, fixando-o em algum ponto invisível, e senti a intensidade do que não era dito. A Filosofia Existencialista nos ensina que o vazio é o espelho de uma liberdade que assusta, um abismo onde nos encontramos sozinhos com o peso de nossas escolhas – ou da falta delas. Ali, ela estava diante de um universo que se recusava a oferecer respostas prontas, um universo que demandava dela a coragem de se reinventar, ou a entrega à inércia.

“Não sinto nada,” ela finalmente murmurou, como se a falta de sentir fosse, em si, uma sensação insuportável. Mas o que é o ‘nada’? O nada é o estado puro da potencialidade, um campo aberto onde tudo ainda pode ser criado. É a página em branco que nos assombra, porque nela está a liberdade, mas também a responsabilidade de escolher o que será escrito.

“O vazio pode ser uma revelação,” sugeri, escolhendo as palavras como quem caminha sobre vidro. “Uma abertura para o que você ainda não ousou conhecer em si mesma. Pode ser o portal para uma liberdade que, sim, é assustadora, mas que também é profundamente sua.”

Ela não respondeu, mas senti a leve tensão que se dissipava no ar, um sinal quase imperceptível de que algo havia mudado. O vazio não é uma condenação, mas um desafio. Ele nos obriga a confrontar o fato de que a vida, em sua essência, não nos oferece garantias, e que cabe a nós preencher essa ausência com sentido, com vontade de ser.

O silêncio final não era mais uma ausência, mas uma presença sutil de algo novo, ainda indefinido, mas pulsante. Talvez ela ainda não soubesse como preencher o vazio, mas ao menos estava disposta a enfrentá-lo, a sentir o que antes temia. Porque o vazio não é o fim de tudo, mas o começo de qualquer coisa. É o espaço onde a vida, em seu estado mais cru, espera por quem tenha a coragem de habitá-la, de transformá-la. E, nesse sentido, o vazio é uma promessa, a promessa de que tudo pode, enfim, ser.

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A morte anunciada https://trivialidades.net/a-morte-anunciada/ https://trivialidades.net/a-morte-anunciada/#respond Sun, 18 May 2025 20:45:52 +0000 https://trivialidades.net/?p=82 Esses dias fui ao cinema assistir Premonição 6. Sim, eu sei – não é um Bergman, nem um Almodóvar, acontece que para mim a franquia tem sabor de coisa antiga. Daqueles sabores que a gente não encontra mais no mercado, mas lembra com nitidez: o ritual de ir até a locadora, o som da porta […]

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Esses dias fui ao cinema assistir Premonição 6. Sim, eu sei – não é um Bergman, nem um Almodóvar, acontece que para mim a franquia tem sabor de coisa antiga. Daqueles sabores que a gente não encontra mais no mercado, mas lembra com nitidez: o ritual de ir até a locadora, o som da porta rangendo, o ar-condicionado sempre frio demais, o cheiro de plástico e fita rebobinada. Eu passava bons minutos (às vezes horas) girando as capas dos filmes como se estivesse escolhendo o enredo da minha própria vida para aquele fim de semana. E Premonição, com suas mortes engenhosamente absurdas, sempre foi uma escolha segura — uma dose de adrenalina domesticada.

Mas naquele dia, não foi o filme que mais me chamou atenção. Foi a moça sentada ao meu lado.

Ela parecia não conhecer a lógica do enredo. Se encolhia na poltrona como se estivesse assistindo a um suspense da vida real. Cochichava para a amiga — e eu, com meu ouvido de psicólogo que não se desliga nem no cinema — ouvia tudo. “Ai, que agonia… tomara que morra logo!”, dizia ela, como quem torce pelo fim de um sofrimento. E então se assustava quando a morte finalmente vinha. Mesmo sabendo que viria. Como se o previsível ainda a surpreendesse.

Fiquei ali, dividido entre a tela e aquela espectadora intensa. Pensando como somos parecidos com ela. Sabemos o que está por vir. No filme e na vida. O carro que não freia, o amor que desanda, o emprego que já mostrou sinais de fim. E mesmo assim, levamos um susto quando o inevitável se concretiza.

A franquia Premonição nunca foi sobre o “se”, mas sobre o “quando” e o “como”. É sobre a espera, o adiamento, a dança macabra entre o destino e a tentativa de escapar dele. A morte é garantida — é o suspense que ilude.

Talvez seja por isso que a moça se agitava tanto. Porque na vida real também é assim. A gente sabe que o relacionamento está morrendo, mas se incomoda com os silêncios. Sabe que a fase ruim vai chegar ao fim, mas se assusta com o momento exato em que ela termina. Porque entre saber e aceitar existe um abismo. E cair nele é sempre inesperado, mesmo quando anunciado.

No fim da sessão, enquanto subiam os créditos, ela soltou um “Ufa” aliviado, como quem sobreviveu a um ataque. Eu, em silêncio, deixei o cinema com outra sensação. A de ter reencontrado um pedaço meu que ficou nos corredores das locadoras. Um tempo em que eu podia escolher o final da noite com as próprias mãos, e onde tudo — até a morte — parecia um pouco mais poético.

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