trivialidades.net

A vida e o cotidiano através do olhar de um psicólogo humanista.

A sala estava imersa em uma penumbra que parecia respirar junto conosco, como se o espaço entre as coisas carregasse um significado que ainda não se revelara. O relógio na parede marcava o tempo com uma precisão fria, enquanto ela, sentada à minha frente, deixava o silêncio falar. Seus olhos, tão cheios de nada, pareciam perder-se em um vazio que não tinha fundo. Não havia lágrimas, nem dor manifesta, apenas a presença inquietante de uma ausência que quase podia ser tocada.

“É um vazio… algo que não consigo nomear,” ela disse, as palavras escapando de sua boca como se fossem um segredo indesejado.

O silêncio que se seguiu foi pesado, mas também era uma espécie de linguagem. Na Gestalterapia, entendemos que o vazio não é simplesmente a falta de algo, mas um espaço onde tudo é possível. É o intervalo entre o que se é e o que se poderia ser, uma brecha na consciência onde a existência se esconde, temerosa. Ali, naquele momento suspenso, percebi que o vazio que ela trazia não era uma ausência simples, mas uma desconexão profunda, uma ruptura que a afastava do que ela poderia ser.

“O que você sente quando encara esse vazio?” perguntei, sabendo que a resposta não viria de imediato, talvez nem viesse em palavras. Porque o vazio, esse lugar onde a alma se perde, se expressa de formas que escapam à linguagem comum.

Ela desviou o olhar, fixando-o em algum ponto invisível, e senti a intensidade do que não era dito. A Filosofia Existencialista nos ensina que o vazio é o espelho de uma liberdade que assusta, um abismo onde nos encontramos sozinhos com o peso de nossas escolhas – ou da falta delas. Ali, ela estava diante de um universo que se recusava a oferecer respostas prontas, um universo que demandava dela a coragem de se reinventar, ou a entrega à inércia.

“Não sinto nada,” ela finalmente murmurou, como se a falta de sentir fosse, em si, uma sensação insuportável. Mas o que é o ‘nada’? O nada é o estado puro da potencialidade, um campo aberto onde tudo ainda pode ser criado. É a página em branco que nos assombra, porque nela está a liberdade, mas também a responsabilidade de escolher o que será escrito.

“O vazio pode ser uma revelação,” sugeri, escolhendo as palavras como quem caminha sobre vidro. “Uma abertura para o que você ainda não ousou conhecer em si mesma. Pode ser o portal para uma liberdade que, sim, é assustadora, mas que também é profundamente sua.”

Ela não respondeu, mas senti a leve tensão que se dissipava no ar, um sinal quase imperceptível de que algo havia mudado. O vazio não é uma condenação, mas um desafio. Ele nos obriga a confrontar o fato de que a vida, em sua essência, não nos oferece garantias, e que cabe a nós preencher essa ausência com sentido, com vontade de ser.

O silêncio final não era mais uma ausência, mas uma presença sutil de algo novo, ainda indefinido, mas pulsante. Talvez ela ainda não soubesse como preencher o vazio, mas ao menos estava disposta a enfrentá-lo, a sentir o que antes temia. Porque o vazio não é o fim de tudo, mas o começo de qualquer coisa. É o espaço onde a vida, em seu estado mais cru, espera por quem tenha a coragem de habitá-la, de transformá-la. E, nesse sentido, o vazio é uma promessa, a promessa de que tudo pode, enfim, ser.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Quem sou eu?

Oi, eu me chamo Marcos André! Nasci em Macapá, numa manhã chuvosa de dezembro — verão no calendário, mas o céu parecia discordar. Ironia: nunca gostei de chuva. Sempre preferi o calor, das ruas e das pessoas. Introspectivo por natureza, mas movido por encontros sinceros, cresci inventando histórias para dar forma ao que sentia. Me formei em Psicologia e trabalho no serviço público, onde escuto vidas reais com a mesma delicadeza com que observo as palavras. Escrevo com a pele. Com memória. Com tudo aquilo que não me deixa em paz. Este blog é meu quintal interno: onde deixo palavras amadurecerem ao sol ou escorrerem feito chuva de verão. Se te tocar, que seja como brisa quente depois da tempestade.

Aviso

Os textos publicados aqui são todos de minha autoria. Aqueles que não forem, farei referência ao autor e ou local onde encontrei. Portanto, se for copiar faça o mesmo: dê os devidos créditos.

Redes