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Crônicas sobre a vida e o cotidiano através do olhar de um psicólogo humanista (…)

Ela estava apenas terminando de lavar a louça quando viu o brilho discreto no espelho da cozinha. Um reflexo quase imperceptível, mas suficiente para parar o movimento automático de suas mãos. Aproximou-se do espelho e, com uma mistura de curiosidade e temor, encontrou o culpado: um fio de cabelo branco, fininho, destoando no meio dos outros. Trinta anos e lá estava ele, como um visitante indesejado anunciando a passagem do tempo.

Ela tentou rir da situação, um riso nervoso que não alcançou os olhos. “É só um fio, nada demais”, pensou, tentando se convencer. Mas não adiantou. Aquele fio, tão insignificante para quem visse de fora, parecia carregar um peso enorme. Foi como se, de repente, um botão invisível tivesse sido acionado, ativando uma crise que ela vinha empurrando para depois. E agora o “depois” havia chegado sem aviso.

Enquanto continuava com os afazeres da casa, a mente dela foi sendo invadida por pensamentos que corriam em espiral. Começou a se perguntar: “O que eu realmente fiz até agora? Onde estão os sonhos que eu tinha? Será que o tempo está escapando por entre os dedos e eu nem percebi?” Olhou ao redor, para a cozinha que ela já conhecia tão bem, mas, de repente, tudo parecia estranho. Como se a vida tivesse acontecido enquanto ela estava ocupada dobrando toalhas e ajeitando almofadas.

O fio de cabelo branco virou símbolo de algo maior. Ele não era apenas um sinal de envelhecimento; era um lembrete incômodo da finitude. Trinta anos – e quantos mais? A sensação de urgência a atingiu em cheio. Ela se viu parada, segurando o pano de prato na mão, enquanto sua cabeça viajava por todos os caminhos não trilhados, as escolhas adiadas, os planos engavetados. Tudo parecia comprimido naquele pequeno fio que insistia em brilhar no espelho, como uma verdade exposta e crua.

Sentia uma mistura de medo e uma espécie de resignação amarga. Ela sabia que o tempo passa, todos sabem. Mas outra coisa é perceber, num gesto tão cotidiano quanto lavar a louça, que ele não para para esperar você se ajeitar. O tempo simplesmente segue, indiferente, enquanto você se perde em afazeres, reuniões e planos que nem sempre saem do papel.

Ela enxugou as mãos com cuidado, quase como se precisasse de um ritual para processar tudo aquilo. De repente, a cozinha se tornou palco de uma pequena tragédia pessoal – o momento em que a ficha cai e você percebe que está envelhecendo. Mas, ao mesmo tempo, havia uma espécie de ironia naquilo tudo. Um fio de cabelo branco, em meio ao caos e à rotina, era o suficiente para desestruturar toda a fachada de tranquilidade que ela tentava manter.

A rotina, que até então era um refúgio, agora parecia sufocante. Cada prato lavado, cada roupa dobrada parecia ecoar a pergunta: “É isso que a vida se tornou?” E, no fundo, ela sabia que não era sobre o fio de cabelo em si. Era sobre a percepção de que a vida é efêmera, e de que o tempo, de maneira implacável, continua a avançar enquanto ela se prende a pequenas tarefas que dão a ilusão de controle.

Enquanto enxugava a última peça de louça, ela decidiu não arrancar o fio branco. De certa forma, ele era uma companhia, uma lembrança de que o tempo passa, mas que também é preciso se permitir sentir o presente, mesmo quando ele traz desconforto. Guardou o pano de prato, olhou uma última vez para o espelho e, com um suspiro profundo, seguiu para o próximo afazer do dia, consciente de que aquele fio branco não era o fim de nada, mas um convite – talvez o mais sério que já recebeu – para rever como estava vivendo.

A vida continua, mesmo quando somos forçados a encarar aquilo que preferimos deixar para depois. Mas agora, com o olhar um pouco mais atento, ela sabe que, entre uma tarefa e outra, o que importa não é só o que fazemos, mas o que sentimos enquanto fazemos. E talvez, só talvez, esse fio branco seja uma chance de enxergar a vida com uma profundidade nova, mesmo nos gestos mais simples.

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Sobre o autor

Oiiie 🙂 Seja bem vindo! Eu me chamo Marcos André, um apaixonado pela leitura e a escrita. Nasci em uma manhã chuvosa de dezembro, na cidade de Macapá, no Amapá. Desde muito pequeno percebi que gostava de imaginar histórias, criar cenários, inventar personagens e escrever sobre minhas inquietações. Sempre fui mais de ouvir do que de falar e isso me levou ao curso de Psicologia, profissão que exerço, hoje, no funcionalismo público. Aqui trarei um pouco das minhas reflexões existenciais sobre a vida, o cotidiano, o óbvio, o trivial etc… Fique à vontade.

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