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Crônicas sobre a vida e o cotidiano através do olhar de um psicólogo humanista (…)

O consultório estava mergulhada em um silêncio que quase parecia palpável, como se cada palavra a ser dita precisasse atravessar um campo denso e silencioso. Ele a observava com um cuidado reverente, tentando captar os fragmentos de dor que ela carregava e que não cabiam em uma só expressão. Ela estava ali, diante dele, mas uma parte sua parecia presa em outro tempo, em outro lugar, talvez nas lembranças que pareciam querer escapar de sua mente a todo instante.

Ela respirou fundo, e sua voz emergiu baixa, trêmula. “Eu sinto como se estivesse em um mundo diferente, como se tudo ao meu redor tivesse mudado de lugar. Como se a vida que eu conhecia estivesse distante, inalcançável.” Ele ouviu, não apenas as palavras, mas o peso daquelas imagens, o sentimento de quem está perdido em um labirinto de memórias e dor, sem encontrar uma saída ou um ponto de apoio.

O terapeuta sabia que o luto não era apenas um sentimento, mas uma experiência profunda que transformava o modo como ela via e sentia o mundo. Lembrou-se da Gestalt, de como cada momento é uma figura que emerge e precisa de espaço para ser reconhecida. O luto dela era como uma figura sem contornos definidos, algo que não se deixava capturar facilmente. “O luto,” ele disse com suavidade, “é como andar em uma paisagem desconhecida, onde cada passo revela um pedaço novo e estranho do que você pensava conhecer. É como se o mundo fosse o mesmo, mas você não o reconhecesse mais.”

Ela o olhou, olhos nublados, e ele percebeu que a metáfora a tocava de algum modo. “Mas como é possível caminhar por essa paisagem? Como seguir em frente se tudo parece tão… diferente, tão distante do que já foi?” Ela parecia pedir um caminho, uma forma de reconectar-se com o que havia perdido, sem saber exatamente como.

Ele respirou fundo, tentando encontrar uma resposta que não fosse apenas palavras vazias. Pensou na filosofia existencialista, na ideia de que o sentido não está no mundo em si, mas na forma como o habitamos, como nos movemos através dele, mesmo quando tudo ao nosso redor parece ter perdido o sentido. “Talvez seja menos sobre encontrar o caminho de volta e mais sobre aprender a habitar essa nova paisagem. De perceber que, embora ela não seja o que você conhecia, ela também faz parte de quem você é agora.”

Ela ouviu, e algo em seu olhar pareceu se acalmar, como se começasse a aceitar a ideia de que sua dor não precisava ser superada, mas acolhida. “Então, eu preciso aprender a viver nessa nova realidade? A carregar essas lembranças sem que elas me destruam?”

Ele assentiu, com uma leveza quase triste, compreendendo o peso daquela pergunta. “Sim, viver com essas lembranças como parte do que você é, não como algo a ser deixado para trás. O luto é como um tecido que se entrelaça à sua vida; ele não apaga as cores, mas as transforma. E, com o tempo, essas lembranças, mesmo doloridas, podem se tornar suaves, como partes de uma história que sempre estará em você.”

Ela respirou fundo, e ele percebeu que, aos poucos, ela parecia menos rígida, como se a ideia de viver com a dor fosse menos assustadora do que tentar apagá-la. Ele sabia que ali não havia uma solução, nem um ponto final, mas uma aceitação sutil, uma permissão para que o luto tivesse seu espaço. Ela não precisava lutar contra a paisagem que o luto desenhava; precisava apenas aprender a caminhar por ela, sabendo que, aos poucos, outros horizontes também poderiam aparecer.

E naquele instante, ele viu que algo dentro dela começava a se apaziguar. Não era uma cura, mas o primeiro passo para aprender a viver entre as memórias, entre o que foi e o que ainda poderia ser. Ela estava, enfim, pronta para deixar de procurar uma saída e, em vez disso, acolher a jornada, sabendo que cada passo a conduziria a uma nova forma de estar, de sentir e, talvez um dia, de viver novamente.

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Sobre o autor

Oiiie 🙂 Seja bem vindo! Eu me chamo Marcos André, um apaixonado pela leitura e a escrita. Nasci em uma manhã chuvosa de dezembro, na cidade de Macapá, no Amapá. Desde muito pequeno percebi que gostava de imaginar histórias, criar cenários, inventar personagens e escrever sobre minhas inquietações. Sempre fui mais de ouvir do que de falar e isso me levou ao curso de Psicologia, profissão que exerço, hoje, no funcionalismo público. Aqui trarei um pouco das minhas reflexões existenciais sobre a vida, o cotidiano, o óbvio, o trivial etc… Fique à vontade.

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